terça-feira, 30 de março de 2010

Quando a Tradução Vira Complicação


Luiz Sayão*

A língua portuguesa é uma das mais bem servidas em traduções bíblicas. Tanto no contexto protestante como no contexto católico multiplicam-se as versões das Escrituras Sagradas. A maioria dos evangélicos brasileiros afirma usar a versão “Almeida”. Todavia, poucos têm a noção de que temos pelo menos 9 versões de Almeida em português. Temos a versão Corrigida antiga, a Corrigida 2ª edição (SBB), as versões Atualizadas (1ª e 2ª edição), a Revisada (IBB-Juerp), a Corrigida de 1997 (IBB-Juerp), a Corrigida Fiel (SBT), a Versão Contemporânea (Vida) e a Almeida 21 (Várias editoras). Além disso, temos outras versões completas: Bíblia em Português Corrente (Portugal), o Livro (Portugal), Bíblia na Linguagem de Hoje, Nova Tradução na Linguagem de Hoje e Nova Versão Internacional (NVI).

Em meio a tantas alternativas, a tradição, a inovação e a mera preferência passional podem obliterar a visão correta da realidade. É absolutamente necessário afirmar que o consenso evangélico é que o texto bíblico tem total autoridade, sendo inspirado verbal e plenamente. Mas é importante dizer que o texto padrão é, e sempre será, o texto original escrito em hebraico, aramaico e grego. Toda tradução das Escrituras é uma tentativa de expressar o texto original. Tais tentativas possuem méritos e deméritos, que devem ser observados de modo imparcial e objetivo. Assim, esse artigo pretende desmistificar a idéia de que existem traduções perfeitas e fomentar o interesse pelo estudo da Bíblia nas línguas originais.

As diversas versões bíblicas possuem, em sua grande maioria, mais méritos do que deméritos. No entanto, alguns textos estão de fato mal traduzidos e precisam de maior atenção em futuras revisões. Vejamos alguns exemplos pertinentes.

Quem abre a Bíblia em Jeremias 48.11 na versão Atualizada ficará perplexo e confuso: “Despreocupado esteve Moabe desde a sua mocidade e tem repousado nas fezes do seu vinho; não foi mudado de vasilha para vasilha, nem foi para o cativeiro; por isso, conservou o seu sabor, e o seu aroma não se alterou.”

Longe de ter qualquer conotação “sanitária” o texto fala de “fezes” no sentido arcaico e não popular. Aqui a palavra significa “borra” ou “resíduos”. Moabe, como o vinho, nunca passou de vasilha para vasilha para ser purificada. Esse é o foco do versículo. Todavia, o leitor comum sofrerá para entender o texto.

Uma das versões recentes, muito defendida por alguns grupos, apresenta problemas sérios em Tiago 1.2. Veja a opção de tradução da versão Corrigida Fiel: “Meus irmãos, tende grande gozo quando cairdes em várias tentações”. Embora reflita o grego literal, o sentido pretendido pelo autor desaparece. Um novo convertido ao ler o versículo assim traduzido pode achar que cair em tentação é motivo de alegria. Longe disso, o texto de Tiago quer ensinar que devemos ter muita alegria quando enfrentamos provações. A tradução é inadequada.

Quem lê Levítico 13.29 na maioria das versões antigas ficará assustado: “E, quando homem ou mulher tiver chaga na cabeça ou na barba”. Como pode uma melhor ter chaga na barba? Existiam mulheres barbudas na Bíblia? É claro que não. A palavra hebraica aqui usada refere-se também à parte inferior do rosto. Portanto, o sentido correto aqui é queixo ou rosto. Os leitores devem colocar “a barba de molho”.

O texto de Oséias 4.12 certamente precisa de clareza na versão Revisada. Diz o texto: “O meu povo consulta ao seu pau, e a sua vara lhe dá respostas, porque o espírito de luxúria os enganou, e eles, prostituindo-se, abandonam o seu Deus.” A maioria dos leitores ficará confusa com o sentido de “pau” e “vara” aqui. Seriam instrumentos de correção? Ou de autoridade? O enfoque do texto é idolatria. Oséias fala de ídolos de madeira. A tradução deve ser melhorada.

Todavia, há certos problemas de tradução que podem até trazer complicação teológica para o leitor. Quem lê Deuteronômio 32.8 na NTLH e compara com outras versões ficará pensativo e perplexo: “Quando o Altíssimo separou os povos e deu a cada povo as suas terras, ele marcou as fronteiras das nações, dando a cada uma o seu próprio deus.” A tradução, baseada numa exegese discutível, sugere que o Deus de Israel deu às nações pagãs os deuses aos quais cultuavam. A tradução da ARA reflete o consenso entre as versões: “Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando separava os filhos dos homens uns dos outros, fixou os limites dos povos, segundo o número dos filhos de Israel.”

Talvez o exemplo de equívoco teológico mais impressionante já feito em português foi o da Bíblia de Jerusalém. Ao traduzir Romanos 12.1, que diz: “Portanto, irmãos, exorto-vos pelas compaixões de Deus que apresenteis o vosso corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus ...” A BJ trocou “sacrifício vivo” por “óstia”, introduzindo um elemento da teologia e prática católica, completamente estranho ao texto original!

O leitor acostumado à versão Corrigida antiga não faz idéia das dificuldades de vários versículos traduzidos de modo inadequado. Quem lê Gênesis 39.1 pode entender a história de José de modo totalmente equivocado: “E JOSÉ foi levado ao Egito, e Potifar, eunuco de Faraó, capitão da guarda, varão egípcio, comprou-o da mão dos ismaelitas que o tinham levado lá.” Imagine só! Potifar era eunuco! Como poderia ele ser eunuco e casado ao mesmo tempo? Alguém até poderia pensar que a mulher de Potifar teria procurado José devido à imperfeição física de seu marido! A tradução não reflete o original. Potifar era um alto oficial de Faraó e não um eunuco.

Nem mesmo a Nova Versão Internacional escapa de problemas e imperfeições. O texto de 1Coríntios 9.6 foi mal traduzido e confuso, e precisa de revisão: “Ou será que só eu e Barnabé não temos o direito de deixar de trabalhar para termos sustento? A versão literalista da Corrigida está melhor: “Ou só eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar?”

A recém-lançada versão Almeida Século 21 tem sido muito bem recebida. Mas, suas falhas também já aparecem. Quem lê João 2.1, estranhará o elemento geográfico inesperado no texto: “Três dias depois, houve um casamento em Canada Galiléia. E a mãe de Jesus estava ali”. Em vez de dizer “Caná da Galiléia”, o texto faz referência a Canada (que será lido Canadá!). O erro precisa ser reparado.

Como vemos, a imensa tarefa de tradução bíblica não é nada fácil. Muitas vezes, uma tradução de um texto vira complicação. É preciso valorizar o esforço de cada projeto de tradução, entender suas principais qualidades e suas imperfeições. As revisões e ajustes sempre serão necessários e importantes. É preciso ver os fatos com isenção e sem preconceitos. Todas as versões devem ser estudadas e comparadas. Afinal, a verdade é que perfeito é somente o próprio Deus, e o texto por ele inspirado no original.

*Luiz Sayão
Teólogo, hebraísta, escritor e tradutor da Bíblia. É também professor da Faculdade Batista de São Paulo, do Seminário Servo de Cristo e professor visitante do Gordon-Conwell Seminary.

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